quarta-feira, 12 de maio de 2010

Reflexão 2




Exercitando a linguagem: trabalho com Paulo Marques

Em conseqüência do diálogo travado até aqui, Paulo Marques propôs duas atividades para o dia de hoje que tiveram muita reverberação no trabalho: observação de um trabalho coreográfico de Odile Duboc (França / 1993) e um exercício de composição a partir da observação iconográfica de posturas corporais.

Durante a observação do vídeo vale ressaltar um ponto que viria a ser mais tarde aprofundado nesta pesquisa: a dilatação do olhar para aquilo que chamamos “movimentos de dança”. O limite deste olhar foi abalado durante a observação do vídeo no que se refere à distinção dos movimentos ditos “cotidianos” daqueles estranhos a essa cotidianidade e, em conseqüência, um posterior alargamento do olhar que passou a incluir o movimento da vida de um determinado espaço (no caso do vídeo, todos espaços públicos) naquilo a que chamamos “movimentos de dança”. Como se pudéssemos passar a entender o movimento da vida “cotidiana” como “movimento de dança”. Surge desta percepção a pergunta: O que atrai o olhar? Pergunta esta também motivada pela leitura de Bauman, “Amor Líquido”.

Um dos pontos que esta pesquisa pretende investigar se refere à relação entre o performer e o público. Em virtude do tipo de pesquisa que o Teatro Xirê vem desenvolvendo, interessa-nos o espaço híbrido entre as linguagens. Desde a origem da companhia temos investido na construção cênica buscando a interpenetração dos movimentos de dança e de teatro, tanto no que se refere ao movimento do performer (ator-bailarino), quanto ao que se refere ao movimento da cena mesmo (sua construção dramatúrgica). E, se chamamos nossos espetáculos “performance”, é porque entendemos o momento cênico dentro deste conceito. Não criamos para apresentação ou representação, criamos para o acontecimento cênico. Aquilo que dizemos, dizemos não apenas porque construímos um material a ser apresentado ao público, mas dizemos à medida que este material é apresentado ao público, “costurando” o discurso no instante do acontecimento cênico.

Para a pesquisa Cuidado, resolvemos assumir o caráter performático da cena e investigar este momento onde não nos cabe, ou não nos interessa, ou não faz diferença, distinguir se aquilo que estamos mostrando, ou aquilo que estamos construindo com o público, é dança, teatro ou performance. Este lugar está nos instigando no momento, ou “o que está acontecendo quando no momento cênico não cabe a distinção entre as linguagens cênicas?”. O que passa aí?

Há também nesta pesquisa, em função do tema proposto, o interesse em descobrir um modo de relacionar-se com o público onde este seja parte, não apenas como público, mas como partner. Como fazer para criar esta relação com o público? Que espaço estabelecer? Como manter o público partner sem que o performer perca o discurso, sem oprimir ou acomodar a platéia na passividade? Estas questões também encontram eco nos trabalhos que Norberto Presta vem realizando nos últimos anos e que têm como resultado duas performances: “Fragmentos de Vidas Divididas” (solo do próprio diretor) e “Extranjis” (performance dirigida por Norberto e Ieltxu Ortueta).

A partir da proposta de Paulo Marques trazida para a sala de trabalho nesta semana, resolvemos investigar respostas para a pergunta “O que atrai o olhar?”.
O exercício proposto foi chamado “Posturas em Movimento” e consistia na simples tarefa de eleger algumas posturas a partir de material iconográfico e organizá-las em seqüência. Feito isto, a seqüência foi realizada segundo duas orientações: 1) deixando o movimento fluir entre as posturas; 2) respeitando o “tempo” de cada postura dentro da seqüência de movimento.

Durante a realização do exercício proposto por Paulo Marques ficaram as seguintes impressões:
1.Primeiro momento: escolha das posturas para trazê-las para o meu corpo e organizá-las numa seqüência.
Enquanto trazia as posturas da imagem para o meu corpo conferia aquilo que toda postura carrega o movimento em potência e que, portanto, está impregnada de uma determinada “qualidade de movimento”, ou seja, uma postura não é estática. Sobre a questão na abordagem de Laban:
[...] ele viu que o movimento era universal. Tudo ao redor é mudança: em crescimento e decomposição, em divisão e união, em vibração e oscilação, em ritmo e fluxo. [...] Movimento está em todas as coisas vivas. Mesmo quando as pessoas pensam que estão paradas, o movimento continua destro delas enquanto a vida permanece. (HODGSON e PRESTON-DUNLOP, 1990a: 16, 20 apud FERNANDES, 2002: 34)
Assim, enquanto “vestia” as posturas, as recriava no meu corpo impregnando-as de minhas qualidades, ou seja, de minha própria vida: minha respiração, meu tônus muscular, as conexões de apoios ósseos no meu próprio corpo e minhas referências pessoais, ou seja, minhas memórias, para cada lugar onde punha meu corpo.

2.Segundo momento: realização da seqüência com fluidez entre as posturas.
Quando passamos ao segundo momento do trabalho o que chamou a atenção foi a necessidade de percepção dos impulsos que me conduzissem de uma a outra postura. Quando colocadas em movimento, ligadas umas às outras, é necessário perceber quais impulsos transitam o meu corpo, levando-o de uma situação à outra. Acredito que aqui se encontram as vivências de atriz e de bailarina. Muitas vezes, durante o processo de treinamento, como atriz e bailarina, a percepção dos impulsos no corpo tem uma orientação distinta, dependendo da linguagem com a qual estou trabalhando. Nos estudos teatrais, referentes ao trabalho do ator, temos algumas definições para o termo, segundo Stanislavski ou Grotovski, por exemplo. Em linhas gerais, o que se entende como impulso, para o ator, refere-se ao preenchimento da ação que este está executando, simplificando: uma espécie de necessidade “interna” para a realização de determinada ação. Para Stanislavski um impulso correto tem a função de impedir a cristalização e a mecanização de uma ação (BONFITO, 2002: 34). O que equivaleria também a dizer que o impulso tem a função de manter viva uma ação, ou manter um movimento em sua potência de vida, de acordo com o que vimos em Laban no primeiro momento do trabalho. O que, para mim, aproxima os exercícios de atriz e bailarina, neste caso, é que na dança, não penso “no que” me conduz de um ponto a outro, mas “como” meu corpo sai de uma determinada situação e se conduz a uma outra. Quando, no exercício de bailarina, consigo perceber o caminho apontado pelo corpo e potencializar este caminho indicado pelo próprio corpo para uma ação seguinte, geralmente, consigo uma ação “teatral” com qualidade desejada. Portanto, enquanto atriz, não penso no que estou fazendo, mas “como” estou fazendo, ou seja, enquanto atriz, procuro pensar como bailarina e, quando consigo uma certa intimidade com aquilo que tenho que realizar, aí sim consigo um outro nível de presença da minha atuação.

3.Terceiro momento: realização da seqüência mergulhando no tempo de cada postura.
Neste momento do trabalho, proposto pela “pessoa de dança” desta equipe de pesquisa e meu mestre de balé clássico, o jogo foi para mim absolutamente teatral e o exercício foi de perceber e localizar a dança nos micro-movimentos mais internos, às vezes, apenas na dança do pensamento que provocava pequenos impulsos internos à medida que eu me deixava “penetrar” em cada postura. O meu policiamento neste momento do trabalho foi o de “não interpretar”, o que queria dizer pra mim, não segurar/controlar esta dança de pensamento que aparecia em cada postura. Quando as posturas foram ligadas pelo “tempo das coisas”, um estado se instaurou em cada uma delas, memórias percorreram o corpo. Contudo, não eram memórias de um passado, de algo que já tivesse feito, eram memórias despertadas, presentificadas no momento da ação/postura/movimento.

O que foi importante também neste momento do trabalho foi perceber como, de algum modo, meus companheiros de pesquisa tratam de questões semelhantes sob pontos de vista muito particulares. Nos três momentos do trabalho propostos por Paulo Marques pude perceber vivências recorrentes nos trabalhos realizados com Norberto Presta, quando este, por exemplo, propõe, no exercício de “desarticulação” (um clássico exercício na pedagogia de Norberto Presta) que percebamos as “posturas” que o corpo assume para deixar que as “presenças” que nos habitam tomem forma. No segundo momento do trabalho com as posturas também encontrei reverberações do trabalho já realizado com Norberto quando este insiste na percepção dos impulsos que nos conduzem de um ponto a outro. E, finalmente, no terceiro momento do trabalho um material sobre o qual o diretor muito tem se debruçado: a memória. Durante a realização da seqüência ocupando cada postura dentro do tempo que acreditava ser necessário para cada uma delas, era como se o momento de realização de cada ação/postura/movimento ecoasse no meu corpo, como um diálogo entre a superfície/pele que assume uma forma no espaço e a superfície/crosta que é um amálgama disforme correspondente à superfície/pele. Neste grande espaço entre a superfície/pele e a superfície/crosta uma reverberação constante de ondas que vão e vem, que ecoam no passado, nas vivências pregressas, mas que o fazem porque encontram um presente onde rebater e acordar.

Referências
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.

FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: o sitema Laban/Bartenieff na
formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002

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