quarta-feira, 12 de maio de 2010

Reflexão 3

Estabelecendo relações entre a pesquisa atual e a proposta de linguagem do Teatro Xirê

O grupo Teatro Xirê surgiu como resultado dos trabalhos de pesquisa e criação do espetáculo “Ciranda”. As pesquisas para este espetáculo surgiram em 1998, embora sua finalização se desse somente em 2003. Muitos foram os colaboradores para a criação do “Ciranda”, pois o espetáculo se desenhava como uma proposta de dança contemporânea para o público infantil, mais precisamente, um público da primeira infância. Interessava-me, na época, uma comunicação com o público que não passasse pela compreensão racional de uma mensagem a ser transmitida. O que me interessava era poder contagiar o público com o desejo de brincar, sem que isso passasse como “moral da história” ou como “conselho para as gerações futuras”.

Na verdade eu acreditava, muito intuitivamente, mas também muito embasada nas experiências vividas com treinamentos para atores e bailarinos, que era possível um nível de contato com o outro onde a compreensão da experiência vivida está num plano distinto ao da experiência mesma, onde algo acontece que é capaz de afetar quem está vendo, ao mesmo tempo em que afeta quem está provocando (ator-balarino) o contato com o outro. Eu sabia que era possível provocar esta situação com o público, embora ainda não soubesse COMO chegar a isto objetivamente.

Produzir o meu primeiro trabalho pensando que teria como público crianças que ainda não sabiam falar, era para mim o desafio que possibilitaria a aprendizagem necessária para chegar à qualidade de comunicação desejada. O que eu precisava, portanto, quando comecei a produzir cenicamente para crianças, era aprender. Queria aprender a ser atriz-bailarina com uma determinada qualidade de comunicação, foi trabalhando para crianças que ainda não se articulavam pela fala que procurei caminhos em direção a este objetivo.
O corpo em movimento era o meio através do qual essa comunicação teria que se dar.

Com uma formação que passava pelo teatro, pela dança e pelo circo, fui disponibilizando os recursos ao meu alcance para chegar junto ao público. Tais recursos, nesse primeiro momento, passaram antes por esse desejo de compartilhar momentos com o público sem o uso da palavra ou de seu referente no corpo. Não desejava que o público lesse a mensagem no meu corpo, desejava que o público compartilhasse comigo uma vivência.

Na época da criação do “Ciranda” desconhecia a existência de outros trabalhos de dança para crianças. Não havia colegas com quem trocar, espetáculos ou outras referências. Foi através de erros e acertos, com contribuições de vários profissionais que passaram pelo Xirê, que fomos desenvolvendo uma linguagem.

Tendo começado a criá-lo em 1998 só considerei o “Ciranda” finalizado em sua forma em 2003. Não porque desejasse uma forma muito especial para ele, mas porque muito conscientemente não desejava que a fixação de uma forma se antecipasse a essa comunicação muito estreita que eu pretendia com o público. Sem um elenco fixo de profissionais, sem suporte estrutural ou financeiro, a saída foi ir somando pacientemente as descobertas até o “Ciranda” chegar ao formato que tem hoje. Não tinha muita consciência, mas a linguagem da qual o Xirê se utiliza hoje ao criar para crianças, estava sendo cuidadosamente articulada. Só pude me dar conta do fato quando comecei a criar o segundo espetáculo do grupo.

No processo de “Quando Crescer, Eu Quero Ser...”, segundo espetáculo da companhia, afirmamos uma proposta de desenhar os movimentos quase como uma animação. Neste exercício os gestos precisavam atravessam sua natureza “escorregando” para os movimentos dançados. Exercício recorrente nas pesquisas de sala de trabalho com Paulo Marques, principalmente por sua colaboração na criação deste espetáculo. Deste modo, a pesquisa começa a aparecer no sentido da manutenção do trabalho e da afirmação da linguagem da companhia.

Reflexão 2




Exercitando a linguagem: trabalho com Paulo Marques

Em conseqüência do diálogo travado até aqui, Paulo Marques propôs duas atividades para o dia de hoje que tiveram muita reverberação no trabalho: observação de um trabalho coreográfico de Odile Duboc (França / 1993) e um exercício de composição a partir da observação iconográfica de posturas corporais.

Durante a observação do vídeo vale ressaltar um ponto que viria a ser mais tarde aprofundado nesta pesquisa: a dilatação do olhar para aquilo que chamamos “movimentos de dança”. O limite deste olhar foi abalado durante a observação do vídeo no que se refere à distinção dos movimentos ditos “cotidianos” daqueles estranhos a essa cotidianidade e, em conseqüência, um posterior alargamento do olhar que passou a incluir o movimento da vida de um determinado espaço (no caso do vídeo, todos espaços públicos) naquilo a que chamamos “movimentos de dança”. Como se pudéssemos passar a entender o movimento da vida “cotidiana” como “movimento de dança”. Surge desta percepção a pergunta: O que atrai o olhar? Pergunta esta também motivada pela leitura de Bauman, “Amor Líquido”.

Um dos pontos que esta pesquisa pretende investigar se refere à relação entre o performer e o público. Em virtude do tipo de pesquisa que o Teatro Xirê vem desenvolvendo, interessa-nos o espaço híbrido entre as linguagens. Desde a origem da companhia temos investido na construção cênica buscando a interpenetração dos movimentos de dança e de teatro, tanto no que se refere ao movimento do performer (ator-bailarino), quanto ao que se refere ao movimento da cena mesmo (sua construção dramatúrgica). E, se chamamos nossos espetáculos “performance”, é porque entendemos o momento cênico dentro deste conceito. Não criamos para apresentação ou representação, criamos para o acontecimento cênico. Aquilo que dizemos, dizemos não apenas porque construímos um material a ser apresentado ao público, mas dizemos à medida que este material é apresentado ao público, “costurando” o discurso no instante do acontecimento cênico.

Para a pesquisa Cuidado, resolvemos assumir o caráter performático da cena e investigar este momento onde não nos cabe, ou não nos interessa, ou não faz diferença, distinguir se aquilo que estamos mostrando, ou aquilo que estamos construindo com o público, é dança, teatro ou performance. Este lugar está nos instigando no momento, ou “o que está acontecendo quando no momento cênico não cabe a distinção entre as linguagens cênicas?”. O que passa aí?

Há também nesta pesquisa, em função do tema proposto, o interesse em descobrir um modo de relacionar-se com o público onde este seja parte, não apenas como público, mas como partner. Como fazer para criar esta relação com o público? Que espaço estabelecer? Como manter o público partner sem que o performer perca o discurso, sem oprimir ou acomodar a platéia na passividade? Estas questões também encontram eco nos trabalhos que Norberto Presta vem realizando nos últimos anos e que têm como resultado duas performances: “Fragmentos de Vidas Divididas” (solo do próprio diretor) e “Extranjis” (performance dirigida por Norberto e Ieltxu Ortueta).

A partir da proposta de Paulo Marques trazida para a sala de trabalho nesta semana, resolvemos investigar respostas para a pergunta “O que atrai o olhar?”.
O exercício proposto foi chamado “Posturas em Movimento” e consistia na simples tarefa de eleger algumas posturas a partir de material iconográfico e organizá-las em seqüência. Feito isto, a seqüência foi realizada segundo duas orientações: 1) deixando o movimento fluir entre as posturas; 2) respeitando o “tempo” de cada postura dentro da seqüência de movimento.

Durante a realização do exercício proposto por Paulo Marques ficaram as seguintes impressões:
1.Primeiro momento: escolha das posturas para trazê-las para o meu corpo e organizá-las numa seqüência.
Enquanto trazia as posturas da imagem para o meu corpo conferia aquilo que toda postura carrega o movimento em potência e que, portanto, está impregnada de uma determinada “qualidade de movimento”, ou seja, uma postura não é estática. Sobre a questão na abordagem de Laban:
[...] ele viu que o movimento era universal. Tudo ao redor é mudança: em crescimento e decomposição, em divisão e união, em vibração e oscilação, em ritmo e fluxo. [...] Movimento está em todas as coisas vivas. Mesmo quando as pessoas pensam que estão paradas, o movimento continua destro delas enquanto a vida permanece. (HODGSON e PRESTON-DUNLOP, 1990a: 16, 20 apud FERNANDES, 2002: 34)
Assim, enquanto “vestia” as posturas, as recriava no meu corpo impregnando-as de minhas qualidades, ou seja, de minha própria vida: minha respiração, meu tônus muscular, as conexões de apoios ósseos no meu próprio corpo e minhas referências pessoais, ou seja, minhas memórias, para cada lugar onde punha meu corpo.

2.Segundo momento: realização da seqüência com fluidez entre as posturas.
Quando passamos ao segundo momento do trabalho o que chamou a atenção foi a necessidade de percepção dos impulsos que me conduzissem de uma a outra postura. Quando colocadas em movimento, ligadas umas às outras, é necessário perceber quais impulsos transitam o meu corpo, levando-o de uma situação à outra. Acredito que aqui se encontram as vivências de atriz e de bailarina. Muitas vezes, durante o processo de treinamento, como atriz e bailarina, a percepção dos impulsos no corpo tem uma orientação distinta, dependendo da linguagem com a qual estou trabalhando. Nos estudos teatrais, referentes ao trabalho do ator, temos algumas definições para o termo, segundo Stanislavski ou Grotovski, por exemplo. Em linhas gerais, o que se entende como impulso, para o ator, refere-se ao preenchimento da ação que este está executando, simplificando: uma espécie de necessidade “interna” para a realização de determinada ação. Para Stanislavski um impulso correto tem a função de impedir a cristalização e a mecanização de uma ação (BONFITO, 2002: 34). O que equivaleria também a dizer que o impulso tem a função de manter viva uma ação, ou manter um movimento em sua potência de vida, de acordo com o que vimos em Laban no primeiro momento do trabalho. O que, para mim, aproxima os exercícios de atriz e bailarina, neste caso, é que na dança, não penso “no que” me conduz de um ponto a outro, mas “como” meu corpo sai de uma determinada situação e se conduz a uma outra. Quando, no exercício de bailarina, consigo perceber o caminho apontado pelo corpo e potencializar este caminho indicado pelo próprio corpo para uma ação seguinte, geralmente, consigo uma ação “teatral” com qualidade desejada. Portanto, enquanto atriz, não penso no que estou fazendo, mas “como” estou fazendo, ou seja, enquanto atriz, procuro pensar como bailarina e, quando consigo uma certa intimidade com aquilo que tenho que realizar, aí sim consigo um outro nível de presença da minha atuação.

3.Terceiro momento: realização da seqüência mergulhando no tempo de cada postura.
Neste momento do trabalho, proposto pela “pessoa de dança” desta equipe de pesquisa e meu mestre de balé clássico, o jogo foi para mim absolutamente teatral e o exercício foi de perceber e localizar a dança nos micro-movimentos mais internos, às vezes, apenas na dança do pensamento que provocava pequenos impulsos internos à medida que eu me deixava “penetrar” em cada postura. O meu policiamento neste momento do trabalho foi o de “não interpretar”, o que queria dizer pra mim, não segurar/controlar esta dança de pensamento que aparecia em cada postura. Quando as posturas foram ligadas pelo “tempo das coisas”, um estado se instaurou em cada uma delas, memórias percorreram o corpo. Contudo, não eram memórias de um passado, de algo que já tivesse feito, eram memórias despertadas, presentificadas no momento da ação/postura/movimento.

O que foi importante também neste momento do trabalho foi perceber como, de algum modo, meus companheiros de pesquisa tratam de questões semelhantes sob pontos de vista muito particulares. Nos três momentos do trabalho propostos por Paulo Marques pude perceber vivências recorrentes nos trabalhos realizados com Norberto Presta, quando este, por exemplo, propõe, no exercício de “desarticulação” (um clássico exercício na pedagogia de Norberto Presta) que percebamos as “posturas” que o corpo assume para deixar que as “presenças” que nos habitam tomem forma. No segundo momento do trabalho com as posturas também encontrei reverberações do trabalho já realizado com Norberto quando este insiste na percepção dos impulsos que nos conduzem de um ponto a outro. E, finalmente, no terceiro momento do trabalho um material sobre o qual o diretor muito tem se debruçado: a memória. Durante a realização da seqüência ocupando cada postura dentro do tempo que acreditava ser necessário para cada uma delas, era como se o momento de realização de cada ação/postura/movimento ecoasse no meu corpo, como um diálogo entre a superfície/pele que assume uma forma no espaço e a superfície/crosta que é um amálgama disforme correspondente à superfície/pele. Neste grande espaço entre a superfície/pele e a superfície/crosta uma reverberação constante de ondas que vão e vem, que ecoam no passado, nas vivências pregressas, mas que o fazem porque encontram um presente onde rebater e acordar.

Referências
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Perspectiva, 2002.

FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: o sitema Laban/Bartenieff na
formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002

Reflexão 1

A Semana de Trabalho de 29 de maio a 5 de junho

A produção do vídeo que ganhou o título Esther Williams não quer mais nadar foi um momento importante do processo de trabalho porque nos fez retornar ao material já desenvolvido durante o Encontro Pedagógico Internacional, em Vighizzolo d’Este (Itália), quando ainda começávamos a cercar o tema da pesquisa. Naquele momento o que aparecia como tema para futura montagem vinha sob o que eu chamava de “feminino”. Na verdade o que eu chamava ali de “feminino” não se traduzia, na minha intuição, como uma questão de gênero: “falar da questão da mulher na sociedade contemporânea”. Não era nada disso. O que urgia tocar (e que sinto estar bem mais próximo hoje) se relacionava à qualidade de relação do humano consigo, com o outro e com o espaço que o circunda. O que tinha a ver com o feminino, para mim até aquele momento, é a qualidade do cuidado com que as mulheres (de modo geral, na maioria das sociedades ocidentais) se dedicam, ou espera que se dediquem, a essas relações. Não por se tratar de uma ocupação própria da mulher, mas porque ao longo da história (na maioria das sociedades ocidentais) a elas coube a função de cuidar. O que não significa dizer que seres humanos do sexo masculino são privados desta qualidade em suas relações.


Quando me aproximei um pouco mais da questão que queria desenvolver com este trabalho, o tema se apresentou sob o nome Cuidado! (primeiro assim, com exclamação). Cuidado! carregava o tema que havia sido primeiramente entendido no âmbito mais geral como “feminino” e, no meu entender, afunilava um pouco mais o tema da pesquisa. E, do ponto de vista do movimento, a palavra CUIDADO continha a projeção o recolhimento, dependendo do sentido com que fosse empregada. Tempos depois me dei conta de que, para carregar os dois movimentos ( ↔ ), CUIDADO precisava estar sem a exclamação. Exclamativamente a palavra poderia ser entendida apenas como expressão de cautela, o que supõe somente o movimento de recolhimento.


Em Esther Williams não quer mais nadar fizemos o exercício de sintetizar em 10 minutos as experiências em torno dos temas acima (feminino e cuidado) desde que começamos a trabalhar, pesquisar e criar em 2007. O resultado foi assim intitulado por Norberto Presta e, sem oferecer resistência, aceitei. Quando aceitei prontamente também intuía que o tema que vínhamos cercando estava presente neste título que, agora sim, recortava o tema com mais apuro sem abandonar as primeiras questões que lhe deram origem.


Na década de 50 Esther Williams representava um ícone feminino que, como todo ícone feminino da década de 50, aparentava um modelo de mulher: corpo perfeito, loiríssima (artificialmente), sempre impecável em suas aparições públicas e, sobretudo, quase uma super-mulher, uma espécie de heroína, com “poderes acima dos naturais”. Esther Williams era a mulher que dançava embaixo d’água, era “A Jane do Tarzan”. A frase que intitula esta fase do trabalho “Esther Williams não quer mais nadar” carrega, do meu ponto de vista, um conflito muito próprio à mulher contemporânea: aquele que a coloca entre a profissão e o lar, entre a potência de ser e a potência de não ser. Entendendo que a potência de ser e não ser podem estar em qualquer das posições: na profissão ou no lar. Porque sobre as mulheres, hoje, pesa a cobrança (de quem? Para quem?) de sucesso em todos os postos cujo direito de ocupar adquirimos no último século.


Dizer que um ícone não quer mais executar a ação que a faz ser reconhecida como tal pode representar um momento de incerteza, de indeterminação, o momento da passagem de uma determinada situação a outra que não se sabe qual é. Tocar este momento de indeterminação, que de algum modo nega uma situação instaurada, me agradava, pois, de algum modo, representava um momento de fragilidade de alguém que até ali sabia muito bem para onde estava indo e a partir dali não era mais, não queria mais. Momento este que carece de cuidado, atenção e... afetos.


A seleção que fizemos do material de movimento, para a montagem de Esther William... também apontou para esta “indeterminação”, tanto na seqüência dos movimentos quanto na qualidade com que realizamos a execução da seqüência.


No final deste processo parei novamente para averiguar que rumos estavam tomando esta pesquisa e conferir que o exercício que viemos praticando foi apenas o de fazer pequenos recortes dentro do tema proposto para a pesquisa apresentada sob o tema Cuidado!. A cada vez que me aproximava mais do tema CUIDADO, verificava que tocava a questão do “feminino” naquilo que me interessava: “as relações entre os seres humanos nas sociedades contemporâneas”. Quando cheguei a este lugar supus que três autores poderiam ser interessantes investigar por tratarem de temas relacionados às formas que tomam as relações entre os seres humanos nas sociedades contemporâneas. Assim, sugeri que nos perdêssemos um pouco na leitura dos seguintes autores: Zygmunt Bauman, Jürgen Habermas e Giorgio Agamben.